A maior mina de exploração de carvão mineral do Brasil pode sair do papel e provocar grandes desastres no Rio do Grande do Sul. O projeto da Mina Guaíba, que fica a apenas 16 quilômetros de Porto Alegre, terá grandes desafios pela frente para deixar de ser um projeto e virar realidade. Situada nos municípios de Eldorado do Sul e Charqueadas, a possível exploração tem sido alvo de contestação do Ministério Público, organizações do terceiro setor e por aqueles que sofrerão diretamente alguns dos estragos provocados pela exploração o mineral, em especial os povos indígenas, os agricultores familiares e os pescadores artesanais.
Um dos questionamentos jurídicos que a empresa que lidera o projeto – a Copelmi – enfrenta partiu do Núcleo das Comunidades Indígenas, Minorias Étnicas e Educação da Procuradoria da República no Estado do RS.
Em entrevista à jornalista Sucena Shkrada Resk, da 350.org, no Brasil, o procurador Pedro Nicolau Moura Sacco explicou quais são os pontos questionados para a implementação do empreendimento.
Confira a íntegra da entrevista:
350.org Brasil – Qual é o objetivo do inquérito civil aberto pela Procuradoria da República, no RS, com relação ao projeto da Mina Guaíba?
Pedro Nicolau Moura Sacco – O inquérito civil foi aberto em março deste ano com o objetivo de apurar os impactos socioambientais do projeto de empreendimento Mina Guaíba, da Copelmi, sobre as populações indígenas próximas à Área de Influência Direta (ADA), o assentamento do Instituto Nacional de Reforma Agrária (INCRA) Apolônio de Carvalho e sobre os pescadores artesanais do delta do Rio Jacuí.
350.org Brasil – Pode exemplificar como empreendimentos deste porte devem agir com relação a populações tradicionais e indígenas de acordo com a legislação brasileira e internacional ratificada pelo Brasil?
Pedro Nicolau Moura Sacco – A Portaria Interministerial nº 60, de 24 de março de 2015, e a Instrução Normativa nº 2, de 27 de março de 2015, estabelecem que a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) deve participar dos processos de licenciamento ambiental, quando houver impactos socioambientais diretos a povos e terras indígenas, localizados no limite de 8 quilômetros do empreendimento submetido ao licenciamento, no caso de mineração em região distinta da Amazônia Legal.
Existem duas comunidades Mbyá-Guarani que estão nessa situação no caso da Mina Guaíba. Uma é a Terra Indígena (TI) Guajayvi, que está a pouco mais de 1 km da ADA, e a outra é a TI Pekuruty, a cerca de 6 km. A participação da FUNAI é no sentido de orientar o órgão licenciador, no caso, a FEPAM, a elaborar um termo de referência, que orientará o empreendedor a elaborar o chamado “estudo de componente indígena” do Estudo de Impacto Ambiental (EIA).
Feito o componente indígena, ou seja, um estudo aprofundado sobre aquelas comunidades, sobre os impactos do empreendimento sobre elas e sobre as compensações e mitigações necessárias, a FUNAI o analisará, podendo recomendar o prosseguimento do processo de licenciamento, sob a ótica do componente indígena, ou apontar a existência de eventuais óbices ao processo de licenciamento e as medidas ou condicionantes consideradas necessárias para superá-los.
Além da obrigação de elaboração do estudo de componente indígena, a FEPAM e o empreendedor deverão consultar os povos indígenas e comunidades tradicionais a respeito do empreendimento. Governos deverão consultar os povos indígenas e comunidades tradicionais “cada vez que forem previstas medidas administrativas ou legislativas suscetíveis de afetá-los diretamente”, de boa-fé, mediante procedimentos apropriados e através de suas próprias instituições representativas, tratando-se do chamado direito à consulta prévia, livre e informada (Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, artigo 6º,1, “a”, e 2).
350.org Brasil – O senhor pode falar mais a respeito da Convenção OIT 169?
Pedro Nicolau Moura Sacco – A Convenção OIT 169 foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro. O licenciamento do empreendimento Mina Guaíba é uma medida administrativa que afeta diretamente as comunidades indígenas e tradicionais próximas. Um dos motivos desse direito à consulta é que a Convenção também assegura aos povos indígenas e comunidades tradicionais “o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma. Como também, de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programa de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente” (artigo 7º).
A consulta não é uma mera formalidade, na qual a FEPAM e o empreendedor devem fazer uma palestra nas aldeias sobre o empreendimento. Na consulta, deve ser explanado o empreendimento com boa-fé, isto é, com transparência e respeito, de modo que os indígenas possam conhecer o projeto profundamente, sobretudo os seus impactos ambientais. A consulta não é meramente um evento explicativo, é um processo de diálogo, na qual os indígenas podem sanar suas dúvidas sobre o projeto e expor suas críticas e demandas. O objetivo da consulta é alcançar um acordo e conseguir o consentimento acerca da medida proposta. E esse esforço por buscar um acordo deve ser genuíno por parte da FEPAM e empreendedor.
E se os indígenas simplesmente não concordam com o empreendimento, ou seja, se não dão seu consentimento? Eis um grande problema, pois a consulta é obrigatória, mas não há obrigação na Convenção quanto ao consentimento. Em alguns casos levados à apreciação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, esta decidiu que o consentimento é condição para o licenciamento de um empreendimento, quando este ameaçar a subsistência física e cultural do povo afetado (caso Saramaka vs. Suriname – 2007). Mas ainda que se entenda que o consentimento não seja necessário no caso das duas comunidades Mbyá-Guarani, a Fepam está obrigada a tomar sua decisão quanto ao licenciamento considerando e respondendo a todas as preocupações e questionamentos levantados pelos indígenas e prevendo medidas mitigadoras e/ou compensatórias pela implantação.
350.org Brasil – Além dos povos indígenas, há outros grupos beneficiados pela Convenção OIT 169?
Pedro Nicolau Moura Sacco – Não apenas comunidades indígenas devem ser consultadas, segunda a Convenção 169, mas também os chamados “povos tribais”, “grupos cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes, tradições ou legislação especial”. Assim, quilombolas e outras comunidades tradicionais potencialmente afetadas devem ser consultadas. Por isso, os pescadores artesanais do Delta do Jacuí, que constituem uma comunidade tradicional e poderão ser drasticamente afetados pelo empreendimento, também deverão ser consultados.
350.org Brasil – O senhor pode esclarecer quais os comprometimentos possíveis deste empreendimento relacionados às aldeias indígenas adjacentes à ADA, aos assentados do INCRA Apolônio de Carvalho e aos pescadores artesanais do Delta do Rio Jacuí?
Pedro Nicolau Moura Sacco – Estamos averiguando os comprometimentos do empreendimento relacionados às aldeias indígenas adjacentes à ADA (15 famílias, cerca de 60 pessoas – Guaijayví / 7 famílias, cerca de 30 pessoas Perukuty), a 82 famílias assentadas do Apolônio e a cerca de 1,5 mil pescadores artesanais do delta do Jacuí. É intuitivo que as características do empreendimento não permitirão a continuidade do assentamento Apolônio na área, tanto que o próprio EIA prevê o reassentamento. Não obstante, o reassentamento é previsto para a etapa de operação da Mina, gradualmente, com a aproximação da lavra das áreas dos assentados.
Um protocolo de intenções firmado entre o INCRA e a Copelmi prevê a realocação gradual dois anos antes da atividade de lavra atingir os lotes. Essa perspectiva é inaceitável, pois os assentados deverão conviver no mínimo sete anos com a operação da Mina, algo incompatível com os impactos ambientais previstos. O impacto sobre os pescadores artesanais está atrelado sobretudo ao problema da drenagem ácida da mina, ou seja, dos metais pesados que podem ser jogados no Rio Jacuí, circunstância que estamos apurando. Quanto aos indígenas, também é intuitivo que ao menos a aldeia Guaijayvi, situada a 1.200 metros da ADA, não tem como conviver com a operação dessa mina.