Entenda alguns pontos que evidenciam os problemas dessa legislação
A Lei 14.299/22, sancionada em 5 de janeiro deste ano, privilegia o carvão mineral e prevê que os custos para seu funcionamento sejam pagos por todos os consumidores brasileiros. A proposta do governo altera a expiração dos subsídios da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) prevista para acontecer em 2027. Além disso, muda o fim da autorização por parte da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) para o funcionamento e comercialização de energia do Complexo Termelétrico de Jorge Lacerda em Santa Catarina, previsto para 2028.
Houve uma pressão por parte dos envolvidos na cadeia produtiva do carvão mineral de Santa Catarina e seus representantes a fim de postergar o funcionamento e renovar a contratação de Jorge Lacerda, que é responsável pela compra e utilização de 97% do carvão catarinense, por meio dessa lei.
O Instituto Internacional ARAYARA.org analisou e diagnosticou a região de impacto de Jorge Lacerda em sua publicação “O Legado Tóxico Da Engie – Diamante – Fram Capital No Brasil” (disponível na íntegra em coalwatch.org), disponibilizando informações importantes do histórico que precedeu o movimento para a sanção da lei.
Em Fevereiro de 2021 foi criado um Grupo de Trabalho coordenado pela Secretaria-Executiva do Ministério de Minas e Energia para realizar um diagnóstico das atividades de geração termelétrica e de mineração de carvão mineral, além de indicar alternativas para a diversificação das atividades econômicas que podem ser desenvolvidas nos territórios de mineração do estado de Santa Catarina.
A partir do compromisso climático da empresa Engie do Brasil, de descarbonizar seu portfólio, na época dona do Jorge Lacerda, foram criados cenários para o destino no Complexo Termelétrico, inclusive com a possibilidade de descomissionamento e encerramento das atividades. Porém, a Engie optou por vender o Complexo Jorge Lacerda em 2021 para o fundo FRAM Capital pelo valor de R$ 325 milhões, passando assim sua administração para a empresa Diamante Energia, sem cumprir com a necessidade de redução das emissões de gases de efeito estufa advindas do carvão ou sequer se responsabilizar pelo extenso passivo ambiental causado por suas operações.
O ônus ao consumidor brasileiro
Segundo informado pelo Tribunal de Contas da União, no período de 2004 a 2010, o encargo tarifário CDE destinado ao carvão mineral alcançou a cifra de R$3,7 bilhões. Somente as usinas do Complexo Jorge Lacerda consumiram 78% de todos os recursos da CDE do período.
De acordo com dados do Ministério de Minas e Energia, a capacidade instalada total de geração de energia via termelétricas a carvão mineral no Brasil é de 2%, sendo apenas 1,3% a contribuição na produção do país. O Jorge Lacerda, citado diretamente na lei do Programa de Transição Energética Justa, tem capacidade total instalada de 857 MegaWatts e opera com apenas 60% de sua capacidade, de acordo com relatório do GT-SC. Sua representação é ínfima diante dos 621.219 GigaWatts calculados em 2020 na capacidade total de geração brasileira, no entanto, mesmo assim receberá cerca de R$3,3 Bilhões até 2025 e ainda mais subsídios por vir com a prorrogação dos contratos definidos pela lei até 2040.
Os subsídios concedidos por meio da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) são encargos pagos na conta de cada brasileiro e brasileira e devem ter um planejamento para atingir objetivos específicos, assim, findando-se ao serem cumpridos. O que não acontece no caso do subsídio direcionado ao pagamento de todo o carvão mineral que abastece Jorge Lacerda, fazendo com que os consumidores deixem de direcionar suas contribuições para projetos que levem a benefícios no longo prazo (e possível diminuição no preço da energia) para financiar uma energia do passado.
“Programa de Transição Energética Justa“ foi o termo escolhido para nomear a lei onerosa que explicitamente posterga a atividade do Carvão Mineral em Santa Catarina:
“Art. 4º É criado o Programa de Transição Energética Justa (TEJ), com vistas a promover uma transição energética justa para a região carbonífera do Estado de Santa Catarina, observados os impactos ambientais, econômicos e sociais e a valorização dos recursos energéticos e minerais alinhada à neutralidade de carbono a ser atingida em conformidade com as metas definidas pelo Governo Federal, que incluirá também a contratação de energia elétrica gerada pelo Complexo Termelétrico Jorge Lacerda (CTJL), na modalidade energia de reserva prevista nos arts. 3º e 3º-A da Lei nº 10.848, de 15 de março de 2004, em quantidade correspondente ao consumo do montante mínimo de compra de carvão mineral nacional estipulado nos contratos vigentes na data de publicação desta Lei.”
Como justificativa para a lei, se fala na observação dos impactos ambientais, econômicos e sociais na região e a valorização dos recursos energéticos e minerais alinhada à neutralidade de carbono, então, vamos aos dados dessa questão.
Alta emissão de gases de efeito estufa
Segundo o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), a cidade de Capivari de Baixo em SC, onde está localizado o Complexo de Jorge Lacerda, é o município com maior emissão de Gases de Efeito Estufa do Sul do Brasil, emitindo mais que as capitais Curitiba/PR e Porto Alegre/RS, se tornando também o maior emissor por área de todo o Brasil. Segundo dados de 2018, o montante total emitido foi de 4.557.370 toneladas de Gases do Efeito Estufa (tCO2) sendo 4.532.684 toneladas advindas do setor de energia representado pelo Complexo Termelétrico Jorge Lacerda, quase a totalidade.
Fonte: Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito (SEEG)
Fonte: Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito (SEEG)
A cidade de Candiota no Rio Grande do Sul, outro município marcado pela atividade de Termelétricas a Carvão Mineral, aparece em terceiro lugar, mas com emissões 64% menores em comparação à Capivari de Baixo/SC.
Considerando informações da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE de gestão dos recursos financeiros da CDE verifica-se que além da diferença nas emissões, o custo do carvão do CTJL é de R$ 338/ton, valor 388% mais elevado do que aquele produzido no Rio Grande do Sul de R$ 87/ton.
Fonte: Inventário das emissões de Gases de Efeito Estufa do ano de 2020 da Engie Brasil Energia S.A
As emissões de Gases de Efeito Estufa (GEEs) provenientes da geração elétrica no Brasil totalizaram 56,3 milhões de toneladas de CO2 em 2019 segundo o Anuário Estatístico De Energia Elétrica 2020 da Empresa de Pesquisa Energética (EPE).
Uma lei de Transição Energética Justa não deveria colocar como privilegiado um empreendimento que, apenas em um município, representa cerca de 8% das emissões GEE totais causadas pela geração de energia no Brasil, como é o caso do Complexo Termelétrico de Jorge Lacerda em Santa Catarina.
O fator da busca pela neutralidade nas emissões constante na lei é contraditório, como demonstrado acima, além de que, o financiamento para pesquisa e desenvolvimento de tecnologias que neutralizem o carbono de toda a atividade que envolve Jorge Lacerda no futuro tem custos altos, que poderiam ser melhor utilizados para promover energias limpas. O Brasil assinou acordos climáticos que tem por objetivo a neutralidade em suas emissões, sendo assim, seria essencial para o país o encerramento definitivo do Complexo Jorge Lacerda que precisará, para continuar funcionando, de sérias adequações.
A própria matéria prima utilizada é comprovadamente de péssima qualidade e eficiência, possui baixo poder calorífico e precisa de um beneficiamento que gera grande quantidade de resíduos tóxicos para ser utilizado.
Passivos ambientais da mineração trazem riscos à população
Entre as discussões para o possível encerramento de Jorge Lacerda esteve a relevância da atividade na região carbonífera de Santa Catarina e as Ações judiciais ativas, como a “ACP do Carvão” Ação Civil Pública Nº 93.80.00533-4 (SC) referente a recuperação de passivos ambientais, que partiu do Ministério Público em 1993 e vem tendo dificuldades em fazer-se cumprir até hoje. A quantia estimada para viabilizar as Ações Judiciais elencadas sobre o tema, em andamento ou em execução, é de R$1,5 Bi.
A questão dos processos foi fator preocupante na negociação do futuro do Complexo, pois como definido pela Justiça, as empresas de energia são co-responsáveis pelos rejeitos gerados pelas minas que abastecem suas operações. Entretanto, como condicionante foi requerido que se aprovasse a lei estadual inconstitucional que exime os novos donos (FRAM Capital – Diamante) de herdar os passivos. Os problemas ambientais gerados pelos rejeitos da mineração atingem diretamente a saúde pública e poluem ar, solo e água ameaçando áreas de preservação ambiental próximas de sensibilidade reconhecida. Além de já terem comprometido rios das bacias pertencentes à área.
Atividades econômicas estão ameaçadas pelo carvão
O turismo, atividade econômica importante no estado, assim como a produção agropecuária e a pesca, sofrem impactos diretos e indiretos com a destruição ambiental. Propriedades nas bacias hidrográficas da região tem sua água e solo contaminados com metais pesados além da modificação da paisagem, e afetam a saúde e o meio de vida de 1,5 milhão de pessoas.
As justificativas sobre a manutenção de 20 mil empregos ligados à mineração no sul do estado é pertinente, por isso é necessário traçar um plano para uma transição energética verdadeiramente justa, que estimule outras indústrias e atividades econômicas com políticas públicas robustas, além de fomentar a economia local já existente, para que os empregos diretos e a sociedade econômica dependente do carvão possa se fortalecer. Apenas subsidiar o carvão e não traçar alternativas econômicas vai continuar comprometendo o desenvolvimento de Santa Catarina e deixando o estado dependente de uma energia ineficiente do passado.
Normas internacionais estão cada vez mais rígidas quanto a importação de produtos brasileiros, a preocupação com a governança socioambiental pode limitar as possibilidades de alcance dos produtos da região.
Operação exige alta demanda de água
Usinas termelétricas precisam de grandes volumes de água para funcionar, particularmente para o processo de resfriamento das turbinas, além disso há risco de contaminação se não for feita uma boa manutenção preventiva.
“A água é de extrema importância no processo de geração termelétrica. Obviamente, é necessária no processo de produção de vapor no interior da caldeira, mas também tem aspecto fundamental no processo de refrigeração de equipamentos da usina. O tratamento de água torna-se importante em razão do risco de corrosão (principalmente nos tubos e paredes da caldeira), associado ao grau de alcalinidade ou acidez e a elementos dissolvidos na água”, aponta o relatório técnico Legado Tóxico.
O que vem a ser uma transição realmente justa
A Declaração para uma Transição Justa, adotada na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas na Escócia, a COP 26, reconhece a necessidade de garantir que ninguém seja deixado para trás na transição para economias com emissões líquidas zeradas – especialmente aquelas pessoas que trabalham em setores, cidades e regiões dependentes de indústrias e produções intensivas em carbono. Na Declaração, os países se comprometem a:
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Fonte: COP26, SUPPORTING THE CONDITIONS FOR A JUST TRANSITION INTERNATIONALLY. 2021.